Depreciativo NÃO é depressivo!

Não tenho paciência para longas depressões
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Se estiver depreciativo...

Vem beber comigo


sábado, 14 de maio de 2011

Corredor da Vitória

    Ele chamou o elevador, mas logo depois de apertar o botão se arrependeu e escolheu as escadas. Começou sua descida rumo à liberdade momentânea que tanto precisava para talvez se encontrar, ou simplesmente para dormir. Caiu na rua em baixo de uma leve chuva e se sentiu orgulhoso por não ter se importado com a reação do porteiro. Escolheu o lado esquerdo e foi-se, variando entre o asfalto e a calçada, sentindo os pingos convergirem todos em sua direção, esperando apenas a próxima esquina que viria.

    Seu peito cortava as gotas que caiam, na verdade quando saiu do Corredor da Vitória ainda estava quase seco, protegido pelas árvores, mas entrou de fato em campo aberto ao chegar no Campo Grande, entrou pelas taciturnas ruas do Canela sem pensar se dobraria ou não a esquina que viesse, sem perceber se estava passando duas vezes no mesmo lugar, sem se preocupar com nada. Apesar de conhecer bem aqueles prédios tudo era turvo à sua volta, os sons dos raros carros que transitavam não eram tão altos como os de seus passos a espalhar a água do chão. Conseguiu realmente chegar à meditação ao misturar suor e chuva em seu corpo e apagar tudo da sua mente, não fazia a menor noção de quanto tempo já estava a correr, nem a que velocidade, percebeu que aquilo era o não-pensar de que tanto falavam os orientais, e como eles estavam certos, aquilo sim era viver! Mas ao se conscientizar disso desfez-se do desfeito e se tocou que voltou a pensar.

   Olhou à sua volta para saber onde estava e não reconheceu, era uma longa ladeira, talvez da Graça, talvez da Federação, tentou refazer a rota em sua mente, mas foi inútil, então simplesmente escolheu subir a ladeira, voltar de onde vinha e caminhar, agora se sentiu realmente cansado. Continuou sem reconhecer nada, não sabia realmente quanto tempo levara a correr e aquilo começou a te preocupar, o medo voltou a correr mais forte em seu corpo do que ele pelas ruas, era grande o silêncio, a escuridão e a chuva, e desses três fenômenos assustadores começou a pensar que o último poderia estar a seu favor, era reduzida a chance de outra pessoa também estar vagando como ele com tanta água caindo. Procurou fazer silêncio para escutar algum movimento e se assustou porque só percebeu um carro que vinha quando o mesmo já estava passando por ele. Acho que não sou adaptado para essa vida de riscos, pensava ele enquanto começava a lembrar dos motivos de seu rompante noctívago, talvez se adaptar aos riscos seja um deles, encarar seus medos também, e é claro, ficar veloz para quando a morte chegar.

   Sorriu ao pensar nisso tudo, na sua dúvida sobre os castigos divinos e da funcionalidade de um confessionário, mas o mais engraçado era imaginar a morte vindo em seu capuz preto atrás de um velocista, na verdade o objetivo não era fujir em definitivo da morte, mas correr por tempo suficiente para pedir o perdão de Deus, correr do diabo e abraçar o lado bom da força.

   Voltou de seus pensamentos quando ouviu o som de um pé em uma poça logo atrás dele, e ao virar-se perdeu todo o sangue quente de seu corpo, era ela! A Morte!

   A Morte, em sua capa preta botas de borracha, cigarro em uma mão e um gancho na outra. Vinha a passos largos em sua direção e estava perto demais para um Creio em Deus Pai ou uma Salve Rainha, andando de costas só conseguiu proferir um: -Puta merda! Minha Nossa Senhora! quando tropeçou e caiu batendo com a cabeça no meio fio.

  Acordou de repente, olhando o céu cheio de estrelas, limpo como num dia de inverno do sertão. Estava deitado de costas em cima de uma pedra, em alguma floresta, não fazia idéia de quanto tempo esteve desacordado, minutos, horas, dias! 

  A sua volta estavam seis pessoas, todas encapuzadas de forma que identificar os rostos era impossível, além do mais estava muito escuro, não havia lua no céu e além das estrelas havia uma fraca fonte de luz e calor em baixo da pedra em que estava, que Vicente imaginou ser algum tipo de fogareiro. A consciência daquilo tudo tomou seu corpo de pavor, um pavor absurdo, adequado para a situação. Os encapuzados estavam de cabeça baixa, em silêncio, vestidos como a morte e segurando facas em suas mãos. Vicente não conseguia mexer seu corpo, somente o pescoço rodando e se aterrorizando, começou a pensar se estava morto ou se seria morto, quando o primeiro encapuzado se aproximou sussurrando algo indecifrável, se abaixou ao seu lado e depois de alguns segundos se levantou com a faca em brasa.

  Vicente tentou gritar inutilmente, tentou se debater com o mesmo insucesso,  só podia sentir o ardor da lâmina em brasa rasgando a pele nas costas de seu pé, a agonia não lhe permitia olhar, não podia gritar nem perguntar nada, era como se estivesse em algum tipo de sedação que o mantinha consciente e sensível a dor, logo que o primeiro terminou veio o segundo, e seguindo o mesmo ritual abriu rágades em seu outro pé, depois vieram as costas das mãos, quando faltavam ainda mais dois desgraçados sádicos anjos do apocalipse para ferrá-lo ele percebeu que estavam escrevendo em sua pele, algo também incompreensível, talvez pelo inchaço e sangue torrado no local. O quinto elemento veio por cima de sua cabeça e segurando sua cabeça pelos dois lados, fechando suas orelhas o obrigou a ver o sexo que sua frente, com uma enorme lâmina, quase um machado, um instrumento que os açougueiros usam para cortar pedaços mas firmes de carne, pedaços com ossos pelo meio, ela abriu suas pernas e olhou fixamente para o seu órgão genital. Vicente logo percebeu que nada seria escrito ali daquela vez, e mesmo sem movimentos sentiu o gosto salgado da enxurrada de lágrimas que corriam pelo seu rosto, pensou novamente na virgindade  de Camila, no sexo descompromissado com tantas mulheres e meninas em sua vida, mas pensou principalmente no "puta merda" expressado antes de sua morte, aquilo com certeza era o inferno, ou pior, o princípio do inferno.

   Começou só então a pensar nas orações que sabia, fazendo promessas pela oportunidade de refazer sua vida, de forma mais digna e honrada, fez votos de todos os tipos, desde pobreza, celibato, agnosticismo, etc. Mas nada disso pôde evitar a descida da lâmina, nem ele de olhar, já que seus olhos foram forçadamente pelo indivíduo que segurava sua cabeça, percebeu pelos longos cabelos negros que seu algoz era uma mulher, só podia ser mesmo, uma punição claramente à devassidão em que vivera. 

   Mas como eu ia dizendo, a lâmina desceu, desceu diretamente no membro cobiçado por algumas mulheres, desdenhado por outras, mas sempre tão esmerado pelo proprietário. Foi então no momento do choque que ele sentiu contrair todas suas vísceras, dobrar os joelhos e soltar um alto grito de pavor, e despertou novamente, outra vez ao lado de uma morte encapuzada, que te segurava nos braços e deu um pulo pra trás parecendo assustada com o grito. 

  "Me Deus, será que passarei a eternidade acordando e acordando em rituais satânicos de flagelação física e moral de minha pessoa?" era o que ele pensava o aperceber que estava recostado na calçada da rua, na mesma noite chuvosa em que correra, no mesmo meio-fio em que caíra, ao lado da mesma morte perseguidora, que era na verdade um homem negro, em sua capa de chuva, guarda-chuva e uma mão e a outra vazia por ter jogado o cigarro fora para socorrer um estranho desmaiado na rua.

  O jovem conseguiu se levantar sozinho, percebeu que estava com seu único pertence, a chave de casa, falou para o homem que estava bem, só havia se assustado, o homem lhe falou que fazia a segurança do local, e aconselhou-o a se retirar, era tarde e perigoso ficar àquele horário na rua. 

  Vicente ainda meio tonto terminou de subir a ladeira e percebeu estar na Graça, procurou o caminho de volta pelo viaduto sobre o Vale do Canela, seu caminho era longo, sua cabeça atordoada, suas roupas encharcadas, suas pernas cansadas, mas o que mais doía eram as costas, das mãos e dos pés...